Não, meus óculos não me ajudam muito, vejo coisas que não via e me esqueço de ver o que preciso. Quando entro no vagão, afogo-me nos livros mágicos, esqueço até de dar lugar pra velhinha gestante de criança no colo. Descobri que de agora em diante preciso medir o IMC das pessoas que entrarem e pedirem lugar.
Os vultos? Com os vultos já me acostumei, agora mudaram pra esbarrões, tapas, palavrões. Eles só querem chegar em casa pra jantar, eu sei.
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Flash de olhos sem letras: sentou-se, olhou pela janela escura o escuro, mordeu a maçã, abriu um livro que tentei com toda a elasticidade do pescoço reconhecer, mas foi em vão. Tinha um detalhe no cabelo que me fez lembrar e rir. Um amigo costumava chamar de “pega-rapaz”. Mas quem pega o quê? Rapaz? Rapaz pega rapaz? Não faz muito sentido pra mim, mas quem discute?
Enfim mergulhou-se em seu mar de letras, enquanto eu, na borda, me divertia com as expressões perdidas dos outros viajantes. Cada um com um balão de pensamento remexido pela pressão no ouvido, pela dor de cabeça e nariz entupido. É como televisão querendo dar defeito, chiando. É a velocidade.
Uma, chora na janela. Outra, ri com a amiga lésbica. Um, pinta quadros no ar. Outro, calcula contas gigantescas com tecnologia de Homem de Ferro.
Ouço o último apito. Num estalar de dedos, notas musicais, números binários e objetos flutuantes são guardados nos bolsos. Dirigem-se cansados à porta.
Já é hora de realidade.
“Cada um vê com o olho que tem, aquilo que pode e o que lhe convém.” Érika Machado